Lá em Goiás, terra em que vivi por vinte anos, o povo da roça usa uma expressão que ainda não encontrei seu par na norma culta da Língua Portuguesa: dilurimento. O dilurimento é aquela angústia que comprime o peito, aquela coisa ruim que fica apertando a gente lá dentro, aquela sensação de que o ar vai faltar, de que a coisa está ruim, de que parece que remédio nenhum, nem repouso nenhum, nem nada que ninguém faça vai fazer passar. Um pobre coração dilurido, então, é digno de dó, de muito dó, porque o coitado está numa situação tão triste que não há “dotô” que possa curar. Eu já havia sentido essa coisa antes, mas como não conhecia o termo, não conseguia explicar pra ninguém o que era, mas agora quando a tal sensação vem, já sei muito bem: é o tal do dilurimento chegando… Outro dia, minha alma sofreu uma crise de dilurimento que ainda não foi embora.
Conversando com um missionário querido, gente crente, gente de Deus, gente que um apresentador de TV qualquer quando quer elogiar diz “esse aqui é do bem”, uma cadeia de emoções foi tomando conta de mim. Um pai de família, mais de 50 anos, quase 30 de ministério, ministério que não se pode adjetivar de tão… tão… sei lá! Tão do Céu, tão da Cruz, tão “tão” (já disse que não tem adjetivo)… Nos meus devaneios, fico imaginando que uma pessoa como ele, e sua esposa, quando chegarem lá no Céu, vão receber um galardão tão lindo… nossa, é melhor eu parar senão os críticos de plantão podem começar a questionar a minha teologia.
Voltando ao ponto, permita-me transcrever um trecho daquele diálogo:
– Mas então qual é a média de sustento mensal que vocês recebem se pensarmos nos doze meses do ano?
– Ah, creio que seria algo em torno de dois mil reais.
– Dois mil reais?
– É… por aí.
– Só isso?
– Sim… são umas três ou quatro igrejas e algumas pessoas que participam com valores diversos.
– Me fala então outra coisa: você recolhe INSS? (ele deu uma risadinha sem graça e disse:)
– Não.
– Nunca recolheu?
– Não, nunca. Nunca deu.
– E como você vai fazer na sua aposentadoria?
– [ silêncio ]
– E plano de saúde, você tem?
– Não, também não. (e a conversa seguiu um pouco mais)
Esse irmão desenvolve um profícuo e excelente ministério. É conhecido e respeitado dentro e fora do Brasil. É muito bem preparado academicamente, teologicamente e missiologicamente. Poderia ter um ótimo emprego e viver uma vida regalada e tranquila, do ponto de vista financeiro, caso tivesse aceito um dos inúmeros convites que teve para atuar secularmente.
Depois que fui embora, já na minha casa, ruminando aquelas informações, fui tentando concatenar minhas ideias que já estavam bem embaralhadas. Quem me conhece sabe que numa hora dessas, a primeira coisa que ferve no meu peito é a indignação “como é que pode uma coisa dessas? Ele tem mais de 50 anos, está lá cuidando de um “jardim muito especial” que Jesus entregou pra ele, preparando a terra, tirando as pedrinhas, os matinhos pela raiz, misturando um bom adubo, cavando o lugarzinho de cada semente, depositando com carinho cada uma, cobrindo com aquela terra boa, preparada, regando dia a dia, pedindo ao Senhor Sol na medida certa, Chuva na medida certa, espantando as aves que querem devorar o primeiro broto que surge, e o segundo, e o outro, e o outro… E aquela nova plantinha vai crescendo e quando surgem os primeiros sinais de uma praga, aquele jardineiro corre em busca do remédio certo e cuida da plantinha como seu fosse seu bebê recém nascido. E ele não tem nem INSS? Plano de previdência privada então seria uma piada… Pronto: fiquei com uma baita crise de dilurimento.
Alguns podem acusar o missionário de ser um irresponsável: desde muito tempo deveria ter pensado em sua aposentadoria, deveria ter seu plano de saúde, deveria ter seguro de vida, deveria ter uma previdência privada, deveria, deveria, deveria – só posso pensar nisso como uma típica neoinquisição: tribunal do santo ofício em pleno século XXI.
Outros, ao saberem de uma situação dessas, podem pensar: tadinho do missionário. Que situação triste… alguém devia fazer alguma coisa – sublinhei de propósito.
Outros, mais esquentadinhos, diriam: isso é um absurdo! Como é que a igreja dele o deixa numa situação assim? E a agência missionária? Precisa dar um jeito nisso! Uma denúncia precisa ser feita! Chamem o pastor dele! Chamem o conselho da igreja! Escrevam uma carta para fulano de tal!
Tem ainda um grupo mais ponderado, mais calmo, que alguns taxariam de mais espiritual que talvez dissesse: tudo vai dar certo. Jesus vai cuidar deles. Qualquer hora dessas acontece um milagre.
No fim de tantas posturas e opiniões, precisamos mesmo é ser verdadeiramente espirituais, práticos e bíblicos. O alguém Jesus já disse quem é: sou eu e é você. O alguma coisa Ele também já disse: pare de ficar criticando, se lamentando e transferindo a responsabilidade e aja! Ponha a sua mão na massa e comece a sovar. O milagre, obviamente, é Jesus quem vai realizar e Ele quer, certamente, que você: tenha uma vida santa, ore, seja sensível para ouvir a Sua voz, ponha a mão no arado e espere o agir d’Ele acontecer, que, obviamente, será no tempo perfeito, da maneira perfeita, e para ser de fato “milagre”, ocorrerá de maneira sobrenatural, divina, daquele jeito que só Jesus sabe e pode fazer.
Tenho a impressão de que esse meu dilurimento tem cura. Ela virá quando alguém me disser: Mônica, a igreja tal decidiu recolher o INSS do missionário. Ah, e a tal igreja tal incluiu em seu orçamento e já está pagando um plano de saúde pra ele, sua esposa e filhos. E sabe, um irmão fez pra ele um plano de previdência privada e se comprometeu a recolhê-lo, mensalmente. E olha só, a igreja dele resolveu fazer um seguro de vida pra ele, aliás, fizeram dois: um tendo ele como beneficiário e outro, a esposa. Não é demais? Com certeza eu responderia um baita “YES”! (e ainda empurrando meu braço pra frente!) Claro que a tradução mais ortodoxa desse empréstimo da Língua Inglesa seria: Aleluia! Glórias sejam dadas a Deus.
No dia em que notícias assim chegarem aos meus ouvidos, meu dilurimento vai passar. Enquanto isso não acontece, vou escrevendo umas linhas aqui, outras ali, vou orando encolhidinha debaixo do meu edredom e aí essas “aspirinas” vão aplainando a minha dor enquanto espero o remédio certo chegar.
Colunista: Mônica de Mesquita