Quem Disse que Índio é Preguiçoso?
Enquanto escrevo este artigo, a indígena mais idosa da aldeia onde trabalhamos extrai fibras de tucum. Ela precisa de um pedaço de corda para atar sua rede, mas estamos a dois dias de viagem da cidade mais próxima, então, não dá para ir ao comércio mais próximo comprar uma corda! É preciso sair à procura de um pé da espinhosa palmeira tucum, entre as enormes árvores da Floresta Amazônica, tirar suas folhas, extrair as fibras da entrefolha, lavar, colocar para secar, enrolar os fios e, por fim, tecer a corda. Isso leva mais de um dia.
A dieta dos nossos amigos indígenas é à base de farinha, peixe e caça. Mas, novamente, não é apenas ir ao supermercado e comprar farinha. Primeiro encontra-se terra firme, pois grande parte da floresta é igapó ou terra “alagada” (inundada durante as enchentes). Depois roça a vegetação fina, derruba a machado as árvores grandes, espera secar e põe fogo. Retira o excesso de troncos queimados e, finalmente, pode plantar a “maniva” (o pé de mandioca). Espera-se então entre seis a doze meses, dependendo da terra e espécie de maniva, para colher a mandioca. Deixa a mesma cinco dias na água, depois retira a casca e transporta para a aldeia, que nem sempre é perto. As mulheres passam horas ralando. Lavam a massa e espremem numa espécie de prensa artesanal chamada “tipiti”. Agora pegam a massa e levam para o forno, com alta temperatura, e passa ali quase um dia torrando a farinha.
O peixe também não é tão fácil como se pensa. Os indígenas com os quais trabalhamos, de cultura semi-nômade, passam até semanas acampados em lugares estratégicos do rio para conseguirem uma boa pescaria, pois aqui na região os rios são pobres em peixe. O acampamento não passa de uma cabana de seis forquilhas, improvisadamente coberta com palha, onde acendem o fogo. Atam suas redes nas árvores em volta, onde dormem no relento, se abrigando na cabana em caso de chuva.
E a caça não é diferente. Nunca ouvi falar de uma anta ou um caititu que tenha vindo visitar a aldeia, se oferecendo como almoço do dia! Para caçar é preciso se embrenhar na floresta, onde tem espinhos, cipós, raízes, terra alagada, folhagem seca, que em alguns lugares atinge mais de metro sobre o solo, e ainda marimbondos enormes, cobras e aranhas peçonhentas!
Um dia desses o chefe da nossa aldeia me perguntou por que o branco tem vida mais longa e com mais saúde que o indígena. Depois de pensar um pouco, respondi que dentre outras coisas, nós, brancos, trabalhamos mais que eles, mas o trabalho deles é mais pesado que o nosso.
É verdade que não há estresse no trabalho. Quem dita o compasso é o próprio organismo. Se dá vontade de descansar, escolhe-se uma sombra e pára por um pouco. A mãe pára a qualquer momento e dá de amamentar o filho. Se não está sentindo-se bem, volta para a aldeia e vai descansar na rede. Se o sol está excessivamente quente, pode-se deixar o trabalho para o outro dia. Nada impede alguém de deixar o plantio da maniva a qualquer momento e embrear-se na mata à procura de uma caça. Afinal, não estão numa linha de produção e sim na labuta pelo próprio alimento. E isso não significa que o trabalho é leve.
A difundida ideia de que índio é preguiçoso, trata-se de um equívoco preconceituoso, concebido a partir de observações superficiais, de um sentimento colonialista de superioridade, tendo como plano de fundo uma forte intolerância com o diferente e uma tendência de generalizar o particular. Quem pensa que indígena é preguiçoso, deveria experimentar por alguns dias a vida em uma aldeia.
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Cácio Silva é pastor presbiteriano e missionário da WEC Brasil (Missão AMEM) e APMT entre indígenas da Floresta Amazônica, no Projeto Amanajé. É professor de Fenomenologia da Religião e consultor do Instituto Antropos nas áreas de Antropologia e Missiologia. Tem bacharelado em Teologia, habilitação em Linguística, especialização em Antropologia Intercultural e mestrado em Missiologia. Atua entre o povo Yuhupdeh na área de educação intercultural bilíngue. É casado com Elisângela, pai de Maria Elisa e Micael.