Na década de 1910 deu-se o início da onda missionária entre os povos nativos, essa liderada por estrangeiros vindo ao Brasil para fazer o trabalho missionário. Quatro décadas depois começava a segunda onda, a de brasileiros evangelizando indígenas. Nos últimos anos vivemos a terceira onda, os próprios índios evangelizam índios. Uma onda forte, pois trata-se de um povo evangelizando o próprio povo, com o intendimento cultural, linguístico, social, etc.
O pastor Izaias Pataxó sugere que as ondas vão além das três tradicionais, existe uma quarta onda no movimento missionário. Conheça mais sobre o assunto na entrevista abaixo. Izaías Pataxó é pastor da Igreja Indígena Pataxó e professor da rede estadual de ensino MG, ele é bacharel em teologia pelo Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix e graduando em serviço social pela Estácio, também é mestrando em Missiologia no CEM (Centro Evangélico de Missões).
RM: Qual a sua etnia e de qual a história do seu povo?
Izaias: Sou indígena da etnia Pataxó, um dos povos tradicionais que mais padeceram ao longo da construção de um novo estado em detrimento do anterior. Na segunda metade do século passado, algumas famílias Pataxó deixaram a região da Bahia, sendo expulsos de suas terras tradicionais. Sob a liderança do cacique Thyundayba se instalaram no município de Carmésia, leste de Minas Gerais, uma área da união homologada em 1989. Os Pataxó de Minas, como são conhecidos, são hoje cerca de 800 pessoas, mas parte destes, já migraram para outros municípios do estado e vivem da agricultura e artesanatos. Outros atuam na saúde, educação e são remunerados pelo serviço. Nasci no município de Porto Seguro –BA, no final de uma ditadura militar em que a segregação nos era imposta como representação de um sistema moderno.
RM: E como o evangelho chegou até você?
Izaias: Poucos foram os olhares da igreja nacional evangélica a nós. Somente na segunda metade do século passado o evangelho chega ao meu povo, através da conversão de meu avô. A pregação se deu por líderes leigos pentecostais. Sou da terceira geração evangélica Pataxó, mas vim entender a vontade de Deus na minha vida, aos 16 anos de idade
RM: Como se envolveu com Missões?
Izaias: Em 2007 o Senhor me despertou para uma nova empreitada, pela qual tenho vivido nestes últimos anos. Foi o nascimento da Igreja Indígena Pataxó, em Minas Gerais, como modelo para alcance dos povos indígenas. É um trabalho pioneiro autóctone, desenvolvido a luz da palavra de Deus. Em parceria com o PROJETO TAIRÚ, uma Missão Evangélica que atua na mobilização e conscientização de missões indígenas e prepara e envia lideres nativos para o campo. Este foi fundado e é coordenado por Everaldo Fraga.
A Igreja Indígena Pataxó nasceu na comunidade para a comunidade e se faz integrada culturalmente e socialmente em sua etnia, buscando cooperar na missão de Deus principalmente no ensino e vivência da sua palavra. Acredito, prego e ensino que Deus é Senhor das culturas. Logo as culturas foram estabelecidas por Ele. Deus ao criar o primeiro casal, pais dos diversos povos, estava pensando na multiplicidade humana que ocuparia toda a terra. Ainda hoje, parte do nosso povo é de natureza sincrética. Cônscio que o evangelho é o poder de Deus para salvação e comunhão da criatura com seu Criador. Estamos construindo pontes para que o nosso povo acesse a segurança da vida realizada em Cristo.
RM: Hoje a Funai proibe a evangelização de povos indígenas, como você experiencia essa restrição?
Izaias: No Brasil, existe uma forte restrição à evangelização de índios. Em muitas tribos, a pregação do evangelho é totalmente proibida. Deus tem levantado os próprios indígenas para confrontar tais imposições humanas e cumprir a ordem divina de anunciar as boas notícias do Reino.
No caso da etnia Pataxó, a imposição colonial mudanças que extrapolam a dinâmica cultural. Esse processo gerou mudanças significativas na língua pataxó e na vida em comunidade, já que os aldeamentos deixaram as tribos mais próximas dos centros urbanos, o que facilitou o trabalho missionário e o nascimento de comunidades cristãs nativas. Esse fenômeno também ocorreu em outras etnias, gerando uma igreja indígena crescente e sólida. No quadro missiológico atual, a igreja nativa tem um papel fundamental nas missões transculturais, sobretudo no que diz respeito às etnias não alcançadas e os meios pelos quais ocorrerá a comunicação transcultural do evangelho. Neste sentido, a contextualização do evangelho seria uma tarefa essencialmente melhor desempenhada por cristãos indígenas, uma vez que os povos indígenas do Brasil têm necessidades básicas e culturais convergentes.
RM: E qual seria o papel da igreja brasileira não indígena?
Izaias: A igreja não indígena desempenharia a função de suporte logístico, teológico, missiológico e linguístico, fornecendo as condições necessárias aos vocacionados indígenas para execução da tarefa e o treinamento de liderança local, já que em inúmeras indígenas é perceptível a falta de preparo para o desempenho de funções pastorais.
RM: Você sugere uma quarta onda no trabalho missionário no Brasil, qual seria essa onda?
Izaias: Isaac de Souza classificou o trabalho missionário no Brasil em três grandes ondas: a primeira onda ocorreu quando os missionários estrangeiros trouxeram a palavra de Deus aos brasileiros e indígenas; a segunda onda veio quando os brasileiros, de igrejas autônomas, levaram o evangelho aos indígenas; a terceira onda missionária aconteceu quando os indígenas puderam também pregar as boas novas a indígenas de etnias não alcançadas. (SOUZA, 2003.44-46)
Em 2013 percebi a importância de um movimento que se aproxima, conversa, dialoga e vive em unidade evangélica e com o quadro missiológico brasileiro atual nasce um quarto processo – o que chamei de quarta onda, em que indígenas e não indígenas unem esforços no cumprimento da missão universal da igreja, vivendo o evangelho da cooperação. Isso quer dizer que a igreja de Cristo, mesmo sendo um só corpo, manifesta-se por meio de corpus culturais distintos, mas não divergentes. Nessa cooperação, há uma sinergia eclesiástica, em que duas forças agem para o mesmo fim: alcançar as etnias que ainda desconhecem o evangelho da paz.
RM: Qual o desafio para que haja melhor cooperação entre igrejas e um trabalho missionário contextualizado?
Izaias: Há alguns anos, as visitas de evangélicos à tribo Pataxó, em Carmésia/MG, eram quase inexistentes. Não havia proibição da entrada de igrejas. O que havia era a visão distorcida de parte da igreja não índia de outro membro do mesmo corpo de Cristo. Atualmente, a igreja indígena tem orado por uma comunhão genuína, que envolva todo o corpo do Senhor, visando edificação e ampliação dos horizontes para vivenciarmos uma experiência holística do evangelho de Jesus.
A proposta de uma comunicação do evangelho contextualizada ainda é recente. Algumas agências e projetos missionários têm realizado trabalhos fantásticos e dignos de reconhecimento. Todavia, notam-se, igualmente, empreendimentos realizados sem o devido preparo e com resultados preocupantes. Há também uma profunda dificuldade em conscientizar líderes eclesiásticos da necessidade de repensar a missão transcultural como está sendo feita e suas práticas inadequadas continuam em vigor, fazendo o evangelho parecer uma mensagem importada, sem qualquer correspondência com o cotidiano dos indígenas. Conforme o testemunho de Amaynara Pataxó, estudante de medicina, durante um estágio no Parque do Xingu:
Em outras conversas com o pajé e o rapaz responsável pelas questões de logística da saúde do Polo, eles disseram que os crentes chegam fazendo muito barulho, com caixas de som em alto volume e que eles são uma ameaça para sobrevivência da cultura. Disseram também que os indígenas que eles conhecem só se tornam evangélicos em trocas de barco e alimento, mas que no dia a dia, não há mudança. E aqueles que realmente tentam viver o cristianismo entram em uma espécie de confusão sem conseguir separar as questões espirituais da cultura e os ensinamentos do cristianismo (Amaynara Silva – Relato de visita a tribos no Xingu, fevereiro de 2016., sic) .
As tradições indígenas são milenares e conduzem a vivência e as realizações de seus indivíduos. Ao se relacionar com estes o que se acha grande, precisa se transformar em pequeno.
Saulo pensava que sua observância da lei era a única maneira possível de culto a Deus, enquanto sua prática era estéril, tola e abominável aos olhos de Deus. Saulo precisou ser transformado para relacionar-se com outras culturas. Recebeu um novo nome – Paulo significa pequeno. E no caminho para Damasco foi transformado em servo. A grande fraqueza do homem é colocar-se em superioridade em relação à alteridade. O fruto dessa postura é a marginalização, a humilhação, a repressão, o sufocamento, o silenciamento do outro, do diferente de mim. No cumprimento da missão, são imprescindíveis homens e mulheres pequenos, dispostos a esvaziar-se de si mesmos em benefício do outro. Somente pela cooperação entre a igreja indígena e não indígena, a missão da igreja será cumprida com eficiência: levar aos povos da terra o evangelho bíblico, relevante, inteligente, contextual e holístico.